ITÁLIA, RENASCIMENTO – Século XVI.
Movidas pela corrente humanista que ampliava sua influência pelo continente, organizados grupos de intelectuais foram formados por toda a Itália durante o século XVI ao XVIII. Esses mesmo grupos eram organizados com o intuito de estudar e discutir literatura, ciência e arte. As reuniões aconteciam geralmente nas casas dos mecenas, protetores das artes e letras. Dentre esses diversos grupos, entrou para a História o que viria a se chamar “Camerata”: um grupo de artistas e filósofos que se reuniam em torno do mecenas e conde Giovanni de Bardi, desde a década de 1570, na cidade de Florença. Motivados pelos aprofundados estudos da cultura grega da Antiguidade, os integrantes da Camerata tomaram a mesma cultura e pensamento como insuperáveis, e como referência para questionar as várias questões remetidas ao pensamento e comportamento da sociedade em que viviam. Pelo Vocabulario (1543) de Alberto Accarigo, o termo “camerata” não se encontra registrado. Na verdade, foi o compositor Giulio Caccini, também protegido de Bardi, quem se utilizou do termo para nomear essas reuniões. No prefácio do seu primeiro trabalho (o “Le Nuove Musiche”, no qual será abordado posteriormente), fundamentado nos estudos feitos pelos seus companheiros florentinos, Caccini fala sobre a camerata em que ele era integrante e frequentador assíduo:
Em verdade, nos tempos que florescia em Florença a virtuosíssima Camerata do ilustríssimo Senhor Giovanni Bardi, Conde de Vernio, onde afluía não somente grande parte da nobreza, mas ainda músicos de primeira ordem e engenhosos homens, poetas e filósofos da cidade, tendo-a eu mesmo freqüentado, posso dizer ter aprendido mais com aqueles doutos intelectuais, que em mais de trinta anos de contraponto.(CACCINI, “Le Nuove Musiche”, 1602).
Durante quinze a vinte anos, Bardi recebeu artistas em seu palácio, porém, esses encontros não possuíam caráter “acadêmico”, como explica Lauro Machado Coelho (“A ópera barroca italiana”, 2000, p.41): “não havia lista de inscritos, pagamento de mensalidade, nem direitos especiais de acesso”. De acordo com Heloísa Muller (em sua tese de mestrado com o título “Le Nuove Musiche – o estilo e canto de Giulio Caccini”, 2006, p.18), “embora com um pouco de atraso em relação às outras artes é neste período que a música realiza a sua guinada fundamental em direção à arte humanista”. Diversos assuntos eram discutidos e relacionados entre si, como os filosóficos, científicos e artísticos. Porém, o assunto “música” era o mais discutido neste círculo, devido até mesmo ao fato de o mecenas Bardi ser músico amador. A questão mais discutida pelos artistas que ali se reuniam foi sobre os fatores que causariam a impossibilidade da música daquela época de suscitar e dominar as emoções humanas, como acontecia na música dos antigos gregos.
Dentre os integrantes da Camerata, estavam Vincenzo Galilei (pai do astrônomo Galileu Galilei, sendo também músico) e Giulio Caccini. Porém, havia outro grupo, protegido pelo mecenas Jacopo Corsi, que estava sempre em contato com a Camerata de Bardi. Deste último grupo eram componentes, a saber, os poetas Chiabrera e Ottavio Rinuccini, e o compositor Jacopo Peri. Ambos os grupos possuíam ideologias semelhantes e muitos interesses em comum, apesar de que os mecenas Bardi e Corsi eram rivais. Entretanto, no ano de 1592, Bardi deixa a responsabilidade da Camerata à Jacopo Corsi, em função de atender a um cargo adquirido como secretário do papa Clemente VIII.
Vincenzo Galilei, que havia estudado por algum tempo com o famoso teórico-musical Gioseffe Zarlino, já havia sido despertado pelo último ao interesse pela música da Antiguidade. O grande interesse de Galilei pela arte grega levou-o a, frequentemente, corresponder-se com seu amigo Girolamo Mei, um erudito florentino que trabalhava na época como secretário de um cardeal em Roma. Tal cargo possibilitou, ao último, acesso a obras da Antiguidade que o permitiram estudar minuciosamente a música grega, entre os anos de 1562 e 1573. Através de Galilei, a Camerata teve conhecimento dessas importantíssimas informações. Numa carta de 1572, Mei alerta Galilei para o fato de que os gregos não conheciam a arte do contraponto, e que tal técnica era responsável pela música não mover os afetos do ouvinte, já que representava um meio de desvalorizar o texto poético, levando à sua inteligibilidade:
Tive a convicção de que todo o coro cantasse uma mesma ária [melodia], ao notar que a música dos antigos era tomada como valoroso meio de comover os afetos, o que se encontra em muitas observações narradas pelos escritores. Como também, atentar que a música coeva é, como vulgarmente se diz, apta, antes, a algo completamente distinto. Ora, [essa distinção entre a música dos antigos e a coeva] nasce necessariamente por força das suas opostas qualidades contrárias, que cada uma costuma trazer naturalmente consigo. As qualidades da antiga são ordenadas e aptas a fazer aquilo que operavam [- mover os afetos]; as da moderna, contrariamente, impedem-lhe este fim.
[...] se a música dos antigos cantasse simultânea e misturadamente várias árias na mesma canção, como fazem nossos músicos com o baixo, tenor, contralto e soprano – ou mesmo com mais ou menos vozes dispostas a um só tempo, sem dúvida teria sido impossível que tivesse podido, gualhardamente, mover os afetos desejados no ouvinte, como se vê que a isto chegasse pelos inúmeros relatos e testemunhos de grandes e nobres escritores. (MEI apud Ibaney Chasin, “O Canto dos Afetos”, 2004, p.12-13).
Ainda segundo a carta de Mei, o mesmo apresenta uma constatação, pelos estudos dos documentos antigos, de que os textos das tragédias gregas não eram falados pelos seus personagens, como se pensava, porém cantados, de forma declamatória. Essa realidade levou Galilei a aderir à monodia como única forma de fazer valer a compreensão do texto em música. Os grandes oradores da época, que apresentavam ao seu público seus discursos persuasivos, poderiam ser tomados como prova do poder associado às palavras, enquanto inteligíveis e estudadas.
As correspondências de Mei ampliaram a aversão de Galilei pelo modo de como a polifonia tratava o texto poético. O filósofo Platão já defendia, em sua obra “A República”, a idéia de que o ritmo e a harmonia devem se adaptar à palavra, e não a palavra a esses. O descontentamento pela polifonia, influenciado por Mei, levou Galilei a publicar, em 1581, seu “Dialogo della musica Antica e della Moderna” (Diálogo sobre a música Antiga e Moderna). Sua tese significou um ataque à arte do contraponto, que, de acordo com sua concepção, desqualificaria o sentido e conteúdo das palavra, levando a atenção do ouvinte apenas para a massa sonora construída. Para Galilei e Mei, texto e música, no intuito de fazer mover os afetos do ouvinte, deveriam se relacionar de maneira intrínseca, em prol da expressividade. Galilei escreve:
Quanto ao modo de exprimir os conceitos da alma e de os imprimir com maior eficácia possível na mente dos ouvintes,... [...] jamais se pensa ou se pensou após o surgimento do contraponto, mas apenas em se lacerar a música no mesmo instante em que a possibilidade se apresente. E que seja verdadeiro que hoje nada se pense sobre como exprimir os conceitos das palavras com o afeto que estes reclamem, senão de uma forma ridícula, como mais à frente será referido, manifesta-o claramente suas observações e regras: estas não convencem a nada além do que ao modo de modular os intervalos musicais. (GALILEI apud CHASIN, “O Canto dos Afetos”, 2004, p.64).
Como personagem da tese de Galilei, “Bardi” afirma que a intenção dos contrapontistas flamengos era, em música, construir um simples som para os instrumentos de sopro e corda, e não a de servir musicalmente ao sentimento expresso da palavra. Para esse fim, portanto, caberia a arte do contraponto apenas a função de apresentar o engenho do compositor e demonstrar o virtuosismo do executante; sendo contrária desta a arte de fazer mover as paixões da alma nos ouvintes, que se faz pela expressividade musical da palavra. De acordo com William Lovelock (autor de “História Concisa da Música”, 2001, p.110),
A base do ataque era que o estilo contrapontístico obscurecia a poesia, o que reconhecidamente acontecia, uma vez que, a maior parte do tempo, cada uma das vozes estariam cantando letras diferentes. Portanto, o contraponto era anátema, e a música, até então o fator predominante, tinha que ser tratada como subsidiária da poesia.
O escritor Lauro Machado Coelho publicou sua opinião sobre o “Diálogo” de Galilei, em seu livro “A Ópera Barroca Italiana” (2000, p.42):
Galilei tinha razão em dizer que a escrita polifônica, em que as vozes se superpõem, às vezes em camadas muito numerosas, dificulta o entendimento; mas não em pretender que ela seja incapaz de mobilizar as nossas emoções – o mais simples dos madrigais de Monteverdi é um desmentido formal a essa tese.
O tratado de Galilei foi responsável por acarretar vários debates sobre o assunto entre os integrantes da Camerata, a saber, Caccini, Peri, Rinuccini, Marco da Gagliano e Emílio Cavalieri. Todas as reuniões e os temas discutidos em debates foram expostos por Angelo Solerti em “Le Origini del Melodramma”. De acordo com o levantamento das reuniões, os músicos pretendiam restaurar o que pensavam ser a música do teatro grego. Para isso, formularam alguns princípios sobre qual seria o papel da música no teatro da Antiguidade, citados por Coelho (2000, p.43):
(1) Deveria haver a união perfeita entre o texto e a música. Para isso, propunham-se a declamação solista e monódica;
(2) O texto deveria ser declamado aderindo às inflexões da fala. A melodia deveria, portanto, acomodar-se à frase, e não o contrário. Isso excluía os ritmos de dança frequentemente impostos às canções e também as repetições, que eram comuns nos madrigais e nos motetos.
(3) A música não deveria limitar-se a acompanhar graficamente o andamento do texto e, sim, tentar exprimir o estado de espírito de cada trecho, imitando e acentuando as entonações típicas de uma pessoa que esteja sob o efeito de determinada emoção.
Muitos foram os efeitos dos estudos e das reuniões da Camerata. Da tentativa de criarem composições de acordo com os princípios propostos pelo grupo, e espelhados no que pensavam ser a música grega, Caccini apresentou em 1602 uma coletânea de árias e madrigais para voz solista acompanhada de um baixo-contínuo. Seu tratado foi chamado de “Le Nuove Musiche” (As Novas Músicas). A escrita inaugura o stile recitativo, uma forma de melodia que imita ritmicamente o pulso e as inflexões da fala. Provavelmente no ano de 1597, Peri foi o primeiro a apresentar suas idéias em música, ao compor a primeira ópera que se têm notícia, chamada “Dafne”; e a segunda, chamada “Euridice”, três anos depois (1600). No prefácio de “Dafne”, Peri explica suas intenções neste trabalho:
Eu tinha querido imitar a fala em minha música [...], pois me parecia que os antigos gregos e romanos tinham usado, em seu teatro, um tipo de música que, embora ultrapassando os sons da conversação ordinária, não chegava a atingir a melodia do canto, ou seja, assumia uma forma intermediária entre um e outro. Portanto, abandonando todos os estilos de escrita vocal até então conhecidos, procurei criar o tipo de melodia imitativa da fala exigida por esse poema. [...] usei o baixo contínuo fazendo com que ele se movesse ora mais depressa, ora mais devagar, de acordo com as emoções que tivessem de expressar.
Desde que Girolamo Mei, em correspondência à Galilei, havia exposto que a música dos gregos era a própria expressão dos afetos humanos, todo o pensamento dos integrantes da Camerata se voltou para o objetivo confesso de defesa à monodia como única forma de comover e sensibilizar a alma do ouvinte. A partir daí, um novo capítulo da história da música passa a ser desenvolvido: O Barroco. Compositores como Caccini e Jacopo Peri impulsionaram esta nova arte de cantar, essa nova estética. Dentro deste panorama, podemos destacar também, e especialmente, o compositor Claudio Monteverdi, que, em aderência as muitas idéias propostas pela Camerata Florentina, inovou a linguagem dos madrigais e levou a ópera ao patamar de grande expressividade criativa. Além disso, Monteverdi evidenciou a segunda prática que se propunha então, a pratica de um novo discurso composicional: a música se voltava para a expressão dos afetos, e somente com esse intuito maior a música poderia se valer, se fazer eloquente, persuasiva, emocionar, tocar a alma.
Amigos visitantes,
É com um imenso prazer que abro este espaço, com o intuito de centralizar reflexões e pesquisas referentes à música antiga. Há tão pouco tempo - uns 4 anos -, o estudo da música medieval, renascentista e principalmente a barroca, vem me despertando a admiração, curiosidade e paixão pela história e pensamento que deram origem as criações artísticas dos compositores que norteiam os períodos em questão. Devido a esse meu enorme fascínio sobre a música antiga, fui motivado à compartilhar minhas idéias e pesquisas informações com meus amigos e com os internautas amantes da música. Será um ganho abrir este espaço! Sejam todos muito bem vindos! Leiam, desfrutem, aprendam, compartilhem, sem moderação!
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Um comentário:
Cara vc gosta de Handel, Monteverdi, Bartoli, Jaroussky e Música Antiga... Vc tem que ser meu melhor amigo... adoro as mesmas coisas...
Parabéns pelo o blog, e valeu por estar seguindo meu blog tbm.
Abraços! encontrei seu blog agora por isso ainda não li suas postagens, mas vou ler sim.
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